O Brasil nem sempre foi assim, quanto às práticas institucionais. Talvez seja difícil de entender o que aconteceu, para os que se atêm a fatos corriqueiros da nossa História. Por exemplo: quando Ministro do Supremo Tribunal Federal, Lúcio de Mendonça aceitou o convite do Presidente Campos Sales, do qual era velho amigo, e integrou a comitiva presidencial que visitou a República Argentina, em retribuição à visita do Presidente Júlio Roca ao nosso país.
De volta ao Brasil, foi surpreendido com a censura pública de Rui Barbosa, num editorial de “A Imprensa”. O grande tribuno baiano, o orgulho de Haia, criticava o ministro por ter acompanhado o presidente.
Comentou o excesso de pompa dessa visita, que revestiu “uma grandeza que as próprias viagens dos soberanos coroados não costumavam revestir” e oestava o magistrado por se haver encartado na cauda da comitiva. Considerava essa participação um rebaixamento da magistratura, por simbolizar – e afirmou enfaticamente – a “inclinação da toga à favorança”.
Mas Lúcio de Mendonça não era uma personalidade frágil, que recusasse um repto. Disso já dera inúmeras provas ao tempo da propaganda republicana. Ao assumir o Pretório Excelso, não perdeu, ao envergar a toga, a vivacidade polêmica de seu perfil combativo. Rui Barbosa não ficaria sem resposta. E esta veio rapidamente, a confirmar a fibra do lutador que, por ser juiz, não recusava a luta.
Começou por explicar a sua conduta de magistrado em face da lei. Cometera ele alguma ilegalidade? Não. Por outro lado, o seu afastamento temporário representara prejuízo para os trabalhos do Tribunal? Também não. E acaso teria advindo, com a sua viagem a acompanhar o Presidente da República, alguma humilhação para o Supremo? Pelo contrário: em Buenos Aires, na vista à Suprema Corte, fora Lúcio de Mendonça saudado pela palavra de Saens Peña e recebera, além da honra de tal saudação, na Faculdade de Direito, o título de acadêmico honorário.
A resposta fora elaborada em termos técnicos e objetivos. Era uma reação elegante à estocada de Rui. Nenhum ponto da arguição da “Águia de Haia” ficara sem resposta. Todavia, a alma de polemista, que permanecia viva na personalidade de Lúcio de Mendonça, fê-lo deter-se para um revide irônico, naquela “inclinação da toga à favorança”.
Usou de uma tirada de humor. Atira ao adversário uma represália de mestre. Afirma que, quanto à “favorança”, de que Rui o arguia, a expressão somente indicava em seu acusador o culto ao português antiquado...
Eram tempos outros. Digladiava-se com “punhos de renda”, pois as pessoas prezavam o vernáculo. Só se chegava ao STF depois de longa militância nas letras, na docência, no aprendizado que só a experiência propicia. Hoje, aprende-se a julgar... julgando!
E os concursos de ingresso às carreiras jurídicas priorizam a memorização. Nada conseguem aferir em termos de aptidão, de empatia, de sensibilidade em relação aos que necessitam do calvário da Justiça e que têm de se munir de doses extraordinárias de paciência para conseguir chegar à decisão definitiva. Isso depois de percorrer quatro imprevisíveis instâncias e de manejar um sistema recursal caótico, numa corrida de obstáculos que não garante a quem tem razão vencer a demanda.
Nenhuma perspectiva de mudança, eis que nunca se fez – e duvido de que algum dia se fará – a verdadeira e profunda reforma estrutural do sistema Justiça brasileiro. Por enquanto, é só saudades de Lúcio de Mendonça, de Rui Barbosa, de Vitor Nunes Leal, de Hermes Lima e de outros luminares. Homens para os quais não há refil...
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo ([email protected])