OPINIÃO

O peso do pássaro


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Romance de estreia da paulistana Aline Bei, “O peso do pássaro morto” é um livro surpreendente. Sua autora inova na forma, ao desenhar períodos segmentados como versos de poema narrativo. Mas não se preocupe, leitor, porque o texto é ível, sem armadilhas nem pegadinhas cults ou referências insondáveis. Exige atenção, o equipamento essencial de toda leitura. E haja beleza no que essa moça escreve. O livro é curto. São nove capítulos, uma centena de páginas e um universo muito bem criado. Conta a história de uma mulher, dos oito aos 52 anos de vida. Seu nome não aparece e ela se recorda da infância de filha única, de pais amorosos, mas de vida dura na escola. De uma juventude ada numa boa, com uma paixonite extremada por rapaz que lhe corresponde em atenção até certo momento. As perdas vão surgindo. Primeiro, a melhor amiga da escola, morta ainda na infância; depois o casal de vizinhos, com o homem curandeiro que lhe respondia perguntas nem sempre fáceis de uma criança e a mulher carinhosa, que lhe servia bolo. O sonho de ser aeromoça e voar vai sendo alimentado enquanto a vida lhe exige outras habilidades. Como a de ser mãe. Ou a de cuidar de um cachorro gigante, o Vento, encontrado por acaso num posto de gasolina e companheiro de pouco mais de uma década. “Com as pessoas vivas eu me sinto mais à vontade pra esquecer”, diz a personagem aos 28 anos. Ou ainda: “Eu estava tomando café, com o dia todo pela frente, o dia é tão longo com suas horas enormes”. 
A relação com o filho Lucas é de pouca convivência, mãe que precisa trabalhar o dia todo como secretária num escritório de advocacia. Lucas fica mais com a Bete, vizinha prestativa e solitária que por alguns trocados cuida do garoto no contraturno da escola. O entrosamento entre o menino e a vizinha é dos melhores. Já com a mãe, sobra a conversa monossilábica. Cada capítulo, um ano da vida da protagonista: 8, 17, 18, 28, 37, 48... Nada de excepcional na trajetória de tal personagem, mas nada de comum na escrita dessa autora. O filho vai fazer faculdade em Ouro Preto, a mãe continua em São Paulo, no pequeno apartamento alugado. Trabalha muito e observa com atenção o seu derredor. Muda-se com o Vento para uma casa velha, que ninguém queria alugar. Na mudança, reencontra coisas, como uma antiga redação escolar: “também não sinto mais frio na barriga para atravessar a rua. Atravesso normal e não sinto nada. Quase não sinto nada além de saudade, professora”.    

Aline Bei nasceu na capital paulista em 1987. O gosto pela leitura foi despertado na escola, e aguçado num curso de teatro frequentado na adolescência. Formou-se em Letras na PUC de São Paulo. Escrevia regularmente, e pensou em se profissionalizar depois de uma oficina literária com Marcelino Freire. O escritor estimulou-a a publicar sua prosa inusitada e muito bem construída. Lançou em 2017 o “O peso do pássaro morto”, e em 2021 saiu “Pequena coreografia do adeus” (belo título, não?), obra de rara delicadeza, da qual já falei aqui.  

“O peso do pássaro morto” foi o ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018. Livraço!    


Fernando Bandini é professor de Literatura ([email protected])

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