ERNST MAHLE

Um réquiem para o maestro


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Escrever é muito mais fácil do que compor música. À nossa frente só há uma linha e não cinco, não é necessário escolher uma das três claves e não temos que nos preocupar com o tom menor ou maior. A quantidade de bemóis ou sustenidos é irrelevante na escrita. São apenas 27 letras que misturadas forma palavras. Nas entrelinhas do pentagrama musical não há ideologia a ser ponderada ou evitada, há apenas uma representação gráfica de um som que irá ser percebido pelos ouvidos.

Quando Fortunato Losso Netto viu dois jovens entusiasmados em criar uma escola em Piracicaba - uma piracicabana e um alemão - não hesitou em os apoiar. Talvez ele viu naquela empolgação, sementes da grande árvore que se tornariam um dia. E a árvore frondosa está aí,  bem na nossa frente, para quem quiser ver. Não foram fruto de investimento público, não são resultado de nenhuma «política pública educacional». Foram simplesmente duas pessoas com um ideal. Muito difícil separar a figura do maestro Ernst Mahle de sua esposa, Cidinha Mahle. Mesmo agora em que um deles se vai para outro mundo.

À nós, seus eternos alunos de música (uns com mais talento, outros com menos e alguns, como este que escreve, com nenhum), parecia-nos que o maestro era eterno. No seu concerto de 80 anos (há dezesseis anos atrás), ele parecia um jovem esbanjando vitalidade. Era a própria música que tomava forma de um corpo alto e esguio movendo as mãos como se a acariciar uma brisa imperceptível - e o vento soprava em forma de notas, um instrumento aqui, outro acolá, um tutti, um pianíssimo.

Há uma legião deles espalhados pelo mundo. Um em Genebra, outros nos Estados Unidos, outros na Alemanha e por onde mais possa ouvir o nome de Mahle, lá estará um de seus alunos a responder: «eu aprendi com ele». Por que escolheu o Brasil? Dizem que foi por conta de uma fábrica de pistões automotivos a razão de sua vinda, mas será mesmo? Outros dizem que foi por conta de outro alemão - Hans Joaquim Kollheuter - um compositor que já havia adotado o Brasil. Pode mesmo ter sido o clima tropical. Por que Piracicaba? Talvez aqui tenha uma explicação mais plausível: os belos olhos de uma piracicabana. Aqui veio e aqui ficou. Não criou apenas raízes que se aprofundam na terra, criou uma árvore frondosa, cujos ramos se espalharam e cobriram todo o país.

Sim, Ernst Mahle com suas notas bem colocadas no pentagrama, colocou Piracicaba no mapa da música nacional. Não bastava que Almeida Júnior, colocasse a cidade no mapa das artes plásticas, nem mesmo que Luiz de Queiroz fincasse aqui a bandeira das ciências agrícolas ou que Thales Castanho de Andrade mostrasse ao Brasil que a literatura infantil nasceu aqui. Não, era ainda necessário mais alguém nesse panteão, Piracicaba ainda não tinha uma sólida tradição musical. Fabiano Lozano ensaiou aqui os primeiros os, mas logo partiu. Havia algo a ser construído, Piracicaba não estaria completa na sua tradição cultural sem a música. E Mahle a colocou finalmente no mapa brasileiro. Não era mais um pontinho no mapa cortado por um rio, era uma escola de música que ecoava seu canto mais além.

Tudo começou num prédio rosa com uma enorme aranha em seu frontispício, lá na rua Santa Cruz. O prédio já não existe mais, deu lugar a outro, mais acolhedor para o ensino. Isso graças ao apoio financeiro do pai de Mahle. Prédio esse que fez história e está hoje à beira de se perder. Nem mesmo o patrimônio histórico da nossa cidade deu importância a ele, não foi tombado como deveria pelo Codepac. Será que as gerações futuras darão importância ao homem que criou toda a história dentro desse prédio? Não dá para saber, mas algo me diz que sim. A grande árvore deu muitos frutos - incontáveis - e suas sementes geraram outras árvores e outros frutos. Espalharam-se pelo Brasil. Mas possuem o mesmo DNA da inclusão, pelo ensino da música.

A grande lição ficou. No fim das contas, não importa se você tem ou não aquele talento para a música, importa sim, é a pessoa que se tornou por ter convivido com Ernst Mahle nos corredores daquela escola. Aquela Escola (com « E » maiúsculo) talvez não exista mais, foi se perdendo entre a política e a vaidade humana. Mas essa Escola, ainda está em nós. As lembranças são ainda vivas, borbulhantes. Impossível não ouvir um som de trombone ecoando em alguma sala escondida. Aquele som de violino arranhado e um outro límpido como água cristalina, se misturando, ainda peram meus ouvidos hoje. O concerto de Hoffmeister para viola não sai da minha cabeça; como o de Chaminade, para flauta ou o de Haydn, para violoncelo. Todos eles ainda estão lá naquela Escola… ainda estão aqui, nas memórias que teimam em não se desvanecer.

Ernst Mahle era um sujeito curioso, daqueles que construíam bonecos movidos pelo vento e os instalava pelo jardim. Entrar em sua casa (aquela lá da rua São Francisco de Assis que não existe mais) era como adentrar a um novo mundo. O vento batendo nos cataventos, os bonecos se movendo e, ao fundo, vinha aquele som do cravo bem temperado de Johann Sebastian Bach. Não era nenhuma gravação, não era vinil não. Era o Mahle tocando. Suas mãos dançavam no cravo como se ele e aquela música fosse uma coisa só.

Era um músico de todos os instrumentos: aquele que faltasse na orquestra, ele tocava. Mas a composição foi seu legado mais grandioso. Em especial para vozes conjuntas - para coro. Mahle tinha uma predileção por musicar canções - um distinto compositor de lieder não alemão (apesar da contradição): Cecília Meireles, Jaime Ovale, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros poetas viraram canções de Mahle. As óperas são, sem dúvida, legado mais significativo, e ele compôs cinco: Marroquinhas Fru Fru, A Moreninha, O Garatuja, Isaura e Inocência (esta última inacabada).

Como tive a honra de escrever o libreto das suas duas últimas óperas, Mahle me chamou à sua casa para que eu lhe mostrasse onde obter (nesse mundo desconhecido chamado internet) os cantos dos pássaros citados no libreto de Innocência. Ele queria reproduzir nos instrumentos da orquestra o som de cada pássaro. Fomos ouvindo uma um pelo «wikiaves». Ele ouvia e dizia «já sei como fazer» e assoviava. Compunha com a familiaridade de quem escreve uma carta. Todas as manhãs, religiosamente, de seu computador (usando na época o software «Sibelius») saiam as partituras prontas, sem correções. Um grande amigo violista se casou com uma flautista, lá estava Mahle compondo para eles um exótico dueto para flauta e viola. Um aluno de tuba estava indo muito bem no instrumento, mas não tinha o que tocar (porque todos os compositores esqueceram-se da tuba como instrumento solo). E Mahle fazia-lhe um Concertino.

Seus Concertinos eram curtos e duravam a execução de 5 ou 7 minutos, seus Concertos ou Sinfonias, um pouco mais longos podiam chegar a 15 ou 17 minutos. Nada devia ser muito demorado. A exceção dessa regra eram seus corais e suas óperas. Ainda assim, não podiam ar de 2h para não ficarem cansativos ao público. Sua ópera «Isaura» foi a última que pôde assistir em vida, graças à generosidade de Marcelo Cançado, enquanto Presidente da Acipi, que não mediu esforços para que a estreia acontecesse no auditório da Acipi. Mahle sempre foi deixado à parte pelo Poder Público, sem exceções (talvez porque sua música não desse votos eleitorais?), mas muitos foram aqueles que o ajudaram. Com seu jeito comedido e tímido, ele sempre cativava aqueles que o cercavam.

Sua música foi objeto de teses e mais teses acadêmicas, muitas delas, fora do Brasil.  Em 2010, um grupo robusto de ex-alunos liderados pelo professor Almir de Souza Maia, criou a Associação Amigos Mahle, com o objetivo de zelar e preservar pelo seu legado composicional. Já somam mais de 2 mil composições. Músicos do mundo inteiro am a Associação Mahle para obter partituras, as quais são enviadas gentilmente, sem cobrança de qualquer direito autoral. A música de Mahle já foi para o CD, para o vídeo, para a televisão e agora está até no Spotify. Vá lá procurar pela Suite Nordestina, pelos Duetos Modais ou pelo belíssimo Concertino para viola de cocho. Ouça. Conheça. Encante-se. Talvez não dê aqueles votos para a próxima eleição municipal, mas lhe dará uma satisfação pessoal impagável.

O folclore e a literatura brasileira foram suas grandes inspirações. Tive a oportunidade de ouvir uma única vez, há muitos anos, mas nunca a esqueci, a sua obra prima: a Cantata Martim Cererê, composta sobre texto de Cassiano Ricardo para coro misto. Uma de suas últimas composições, Mozart no Céu (com letra de Manuel Bandeira) foi também escrita coro (o coro da Esalq) e dedicado à maestrina Cíntia Pinotti, recentemente gravado. Você pode ver no Youtube. E  nas suas óperas, há sempre um papel de destaque para uma soprano. As baladas  ás óperas A Moreninha e Isaura são frequentes no repertório de concerto. Depois que Mahle escolheu a dedo a soprano «perfeita» para cantar suas árias, já era impossível pensar nelas sem ouvir a voz da piracicabana Raíssa do Amaral. Sempre perguntávamos: o que ele escreveu de novo para a Raíssa cantar?

Entre suas muitas histórias, cada aluno tem a sua, Mahle tinha suas peculiaridades que o tornavam único. Se cada um tem uma boa história para contar do maestro, vou registar duas delas, muito pitorescas.

Mahle formou 3 orquestras: uma infanto-juvenil, uma sinfônica e uma de câmera. Todas elas tinham um propósito didático. Mais do que «tocar boa música», era importante incluir o aluno na prática do conjunto musical. Não era uma orquestra para ganhar prêmios de execução. Era para fomentar o aprendizado da música. E ele, pessoalmente, assumiu a regência de duas delas: a Sinfônica e a de Câmera. Na orquestra infanto-juvenil, a regência ficava a cargo de seus alunos de regência (e eram muitos). Um belo dia, ensaiando a Sinfônica, um trompetista escorrega na entrada de sua vez e toca antes de todo mundo começar. Mahle olha diretamente para ele, mas ao contrário de o repreender com duras palavras, como faria qualquer outro maestro, ele apenas sorri e naquele português sempre carregado de sotaque alemão, diz: «antes tocar só, do que Mahle acompanhado!».

A outra história é que Mahle sempre gostou de nadar, até a alguns meses atrás, todas as manhãs (pontualmente às 5h) ele nadava. E nas férias ou aos fins de semana, quando ia para sua casa em Ubatuba, o fazia no mar. Em frente à praia em que costumava frequentar havia uma pequena ilha desabitada. Então Mahle, todas as manhãs nadava até ela. Subia na ilha e lá ficava por horas. Intrigando os curiosos, conta-se que um dia alguém resolveu o seguir (a nado, evidentemente) para saber o que ele fazia tanto tempo sozinho numa ilha desabitada e cheia de mato. O que se viu foi revelador. Sem ele perceber, o nadador curioso chegou na ilha, logo depois do maestro e se escondeu para observar. Depois de subir na ilha, Mahle vai até um ponto para dentro da ilha e começa a cavar. Embaixo da areia, ele desenterra seu pequeno tesouro: dentro de um saco plástico, cuidadosamente fechado, ele retira uma flauta doce, senta-se sob a sombra de uma árvore e põe-se a tocar uma melodia barroca em sua flauta…

Mas é hora do último acorde desse réquiem. Talvez o acorde perfeito: um acorde maior com a sétima menor. Um dó, mi, sol e si bemol. Este está de bom tamanho. Mahle agora faz música no céu depois de uma longa vida. Deixou-nos um legado, um verdadeiro farol na popa desse barco da vida. Basta segui-lo, pois ele nos ilumina o caminho (a nado). Parece que ainda estou a ouvir o cravo bem temperado de Bach. É como uma fonte que jorra água infinitamente.

Por Marcelo Batuíra Losso Pedroso

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