ARTIGO

As emoções que herdamos sem saber


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Nem tudo o que sentimos é, de fato, só nosso. Algumas emoções parecem brotar sem aviso, como se viessem de um lugar desconhecido. Angústias sem explicação clara, medos que não combinam com a lógica do presente, reações desproporcionais a acontecimentos aparentemente pequenos. Nessas horas, a tendência é pensar que há algo errado conosco. Mas e se estivéssemos apenas sentindo o que outros, antes de nós, não puderam?

Em muitas famílias, há histórias não contadas. Traumas escondidos, perdas silenciadas, episódios que viraram tabu. São eventos que ficaram no ado, mas deixaram marcas profundas. Quando não são elaboradas, essas vivências seguem vivas de outro jeito. Não aparecem nos álbuns de fotografia, mas se revelam nos gestos, nos padrões repetidos, nos sentimentos que insistem em voltar. É como se, mesmo sem palavras, a dor se transmitisse.

Essa transmissão não se dá por má intenção. Pelo contrário, muitas vezes é uma tentativa inconsciente de proteger. Um avô que não falou sobre a guerra, uma mãe que evitou contar sobre um aborto, um tio que desapareceu da narrativa familiar. Essas lacunas moldam o jeito como uma família se organiza, como se comunica, como ama ou evita amar. São memórias emocionais que não precisam ter sido vividas diretamente para impactar profundamente quem veio depois.

Crescemos dentro dessas atmosferas invisíveis. Sentimos quando há algo que não deve ser dito, percebemos onde estão os silêncios mais pesados. Aprendemos a evitar certos assuntos sem nem saber por quê. E, ao fazer isso, incorporamos parte desse ado. Não raro, repetimos padrões de sofrimento ou carregamos uma culpa que não é nossa. Muitas vezes, adoecemos tentando dar forma a dores que não nos pertencem totalmente.

Esse tipo de herança emocional não é como um bem material que se recebe. É sutil, silenciosa, mas poderosa. Ela se infiltra nas relações, nas escolhas, nos limites que impomos a nós mesmos. Pode estar por trás de uma dificuldade em confiar, de uma tendência a se sabotar, de um medo constante de perder quem se ama.

São histórias antigas que, sem serem contadas, seguem se reencenando.

Romper esse ciclo começa com o reconhecimento. A consciência de que aquilo que sentimos pode ter raízes mais profundas do que imaginávamos já é, por si só, um gesto de transformação. Quando olhamos para a nossa história com essa lente mais ampla, amos a identificar os fios que nos ligam ao ado e podemos, então, decidir o que desejamos levar adiante e o que podemos deixar.

É comum que esse processo traga resistência. Afinal, revisitar o que foi doloroso, mesmo indiretamente, mexe com o que há de mais íntimo. Mas é também uma chance de libertação. Porque entender a origem de um sofrimento não apenas alivia, como nos permite agir de maneira mais consciente. Deixamos de ser guiados apenas pelo impulso e amos a ter escolha.

Esse movimento não precisa ser feito sozinho. Às vezes, contar com a ajuda de um profissional é essencial. Outras vezes, basta uma conversa franca, uma escuta atenta, um encontro verdadeiro entre gerações. A força de uma família não está em esconder seus fantasmas, mas em ter coragem de iluminá-los. Quando isso acontece, o afeto pode circular de forma mais livre, mais honesta, mais leve.

É bonito pensar que, ao curarmos nossas feridas, também estamos cuidando de quem veio antes e de quem virá depois. Porque cada o que damos em direção à verdade emocional abre espaço para relações mais saudáveis, mais conscientes, mais humanas. E se somos herdeiros de histórias difíceis, também podemos ser os iniciadores de uma nova narrativa.

Não se trata de buscar culpados, mas de acolher. Somos aqueles que podem interromper o ciclo, reinventar os vínculos, curar a memória. E isso, por si só, já é um gesto de amor.

Com carinho, Fabiane Fischer.

Fabiane Fischer é especialista na recuperação de dependentes químicos, abusos e compulsões.

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