
São várias as camadas de apagamento histórico, em um processo de longa duração, que sempre teve como propósito último invisibilizar a presença do negro na história de Piracicaba. A eficiência dessa estratégia racista se comprova na medida em que se consolidou, no imaginário popular, a percepção de que a cidade não guarda nenhuma identidade negra, esquecendo os muitos personagens pretos que circularam por aqui, forjando riquezas materiais e também muita cultura.
Sem monumentos, sem registros, sem memórias! Uma história paulatinamente desconstruída, apagando os rostos indígenas e negros que edificaram a cidade de Piracicaba. Outro dia um evento na Biblioteca Municipal resgatava o ciclo de imigração na história da cidade, celebrando portugueses, italianos, alemães, sírio-libaneses, judeus. No território que viceja o Batuque de Umbigada, a Capoeira Angola, o Maracatu, o Maculelê, o Samba de Lenço, inusitadamente ninguém se lembrou de convidar um representante da população negra para narrar e compartilhar suas memórias. Como se o negro e também o indígena não fossem fundamentais na dinâmica de construção da identidade na cidade, que traz, desde o nome Tupi-guarani, suas remotas raízes indígenas, sendo o lugar onde o peixe para.
Indígenas e negros simplesmente apagados da história, sem direito a monumentos, nem memórias. A redução da Praça da Forca em um mero estacionamento é bem ilustrativa de uma postura oficial de desprezo e de violência aberta contra a história negra na cidade. Na trilha dos vestígios dessa presença negra em Piracicaba, o grande professor Noedi Monteiro, pesquisador competente, tem se empenhado para compor um mapeamento dos pontos fundamentais que remontam e demarcam uma rota negra na cidade. A Praça da Forca, que agora não a de um árido estacionamento, é um desses lugares de memória e referência negra.
É bem verdade que a Praça da Forca, mais conhecida como Praça do Rolo, já andava há muito abandonada pelo poder público municipal. Mas naquela praça existiam vinte árvores, compondo um espaço de sombra e refúgio bem na região central. Vinte árvores que foram impiedosamente ao chão, para dar lugar a um estacionamento, a serviço dos clientes do comércio e também dos fiéis da Igreja Universal. Esse é um caso emblemático, que não deixa de revelar o equívoco da concepção de progresso e desenvolvimento que orienta a atual gestão municipal.
O tema mais urgente do contemporâneo tem sido a questão das mudanças climáticas. O próprio Papa Francisco publicou mais recentemente a Carta Encíclica Laudate Deum, aprofundando as reflexões sobre a ecologia integral e as mudanças no clima. A busca por soluções que promovam justiça ecológica e sustentabilidade ambiental tem se constituído como central para qualquer projeto de desenvolvimento minimamente ético. Contraditoriamente, em Piracicaba, vinte árvores vigorosas, saudáveis foram simplesmente derrubadas pelo poder público.
O caso da Praça da Forca talvez seja a síntese perfeita da atual gestão. Em uma só ação infeliz, que avilta muitos direitos, a prefeitura de Piracicaba conseguiu destruir um lugar simbólico de memória negra e, ao mesmo tempo, derrubar vinte árvores, avançando na contramão da visão contemporânea, que entende a importância de se preservar e até ampliar os espaços verdes pela cidade. Se não há lugar para a história da população negra, em um movimento de apagamento e invisibilização, tão pouco há respostas para os dramas ambientais que assolam o mundo contemporâneo.
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