
Lá longe, bem adiante na vida, aos quarenta e três anos, descobriu a vulva para uso próprio e não alheio. E nela, a sua ervilha, seu propósito, suas irradiações, palpitações à fricção.
Foi por esse tempo tardio mesmo, em que as articulações começam a dar sinais de cansaço, que sentiu haver corpo e não somente uma cabeça por ele transportada, como houvera desde sempre. Descobri-lo, o corpo, não foi pouco. Aliás, uma festa solitária em suas sensações, pelo meio da vida, quanta perda de tempo, êxtase e susto, tremor, pudor. Mas, isso por si só, embora intimamente grandioso, não trouxe outras revoluções, não a retirou daquilo que desde sempre vinha sendo o mesmo.
Antes, quando sua carapaça era mármore, gelo, papel, armadura, inumana, nenhuma pele sensível, ela vivia na segurança da falta, quase morte, ausência de estremecimento como se a vida fosse aquilo, extensa planilha racionalizável, linha reta, zero contato.
Pela mesma época em que se dera conta de que havia corpo, descobriu um coração. Que acelera, gela, fica mudo, se enternece rasga o peito em embargo. Um coração que dói, mas que também se inunda. Não era bem o coração o depositário ou a usina de tais emoções, sabia, mas nele finalmente sentia os sobressaltos, frissons em contraste com a calmaria desde sempre, todos os seus furores precocemente anestesiados. Ainda assim, com ele não conseguiu fazer nada além.
Esgueirara-se, desde criança, para caber, adaptar-se, fazer jus, não brilhar demais para não suscitar revanches, ar um tanto despercebida era sua forma mais inteligente de vida. Então, era secretamente que ia às suas próprias festinhas íntimas depois do clitóris tardiamente descoberto, ocasiões, momentinhos roubados, respiros que aram a alegrar sua existência; o marido nunca alcançara tal possibilidade porque só sabia de si mesmo: infiel, herdeiro de muitos imóveis e empreendimentos, quatrocentão, imponente feito um pavão, traiçoeiro como uma enguia, seu poder, séquito de bajuladores e amantes, mas... o regozijo íntimo dela era ele não saber desbravar o potencial escondido de uma mulher, assim, de que adiantava ter tantas se a nenhuma conseguia levar ao paraíso, para além de sua simbolização social?
Era na animalidade de macho alfa que ele operava e ela, esposa, que aceitasse, declarara em ato, já ao início do casamento, nisto fora honesto, dizendo sem falar que por essa vida ele não se restringiria de nada, tinha muitas fomes, era um excessivo e se julgava muito além de todos, merecedor de nada menos que tudo, o arrogante, o soberbo, impositivo reinando.
O rosto desfigurado, uma ruína, ela chegava à velhice. Sabia que poderia ter chegado melhor, se a vida tivesse sido outra. É então aí que uma vida deságua. A matéria se desfazendo, se distorcendo, se reduzindo, tudo dito e antevisto que afinal seria assim, mas no percurso, para podermos continuar mais ou menos inteiros, alguma ilusão, alguma distração e negação da ideia de que sempre haverá a decadência e um fim.
Em cada vinco daquela face, o inventário das dores, a permitida destruição de si atrás desse marido que a vida inteira lhe metera garganta abaixo o escancaro de sua infidelidade. Assim, uma quase metódica devastação a que ela nunca reagira frontalmente, toda aristocrática, emulando superioridade ancestral ao fechar os olhos para o desfile de teúdas & manteúdas junto do marido que a transformava, em deslocamento, naquela que empapada de ódio maltratava entredentes pedintes de rua, mendigos, desvalidos, de oprimida a opressora. Sorria, ao lhe afundarem nas costas o punhal; sorriso amargo, odiento, que se transformava em vilania encoberta. Anestesiar-se era um modo de atravessar, de ar, mesmo de justificar a vida que se enviesa por caminhos obscuramente prometidos. Mas não é por nada que alguém se perde de seu lugar de origem e se desfaz ao ponto do irreconhecível e irremediável.
Quanto sapo engolido? Quanta peçonha não destilada lhe corroendo inteira? Quanta raiva não externalizada, quantos preceitos arcaicos de auto aprisionamento para continuar seguindo na mentirosa linha da tradição? Tudo isso se transformava numa potência de destilação de venenos transparecidos em seu olhar, em sua forma de gentilmente subjugar e diminuir alguns escolhidos.
Sem limites, o marido chegava a levar três de suas amantes para almoçar em casa com a esposa, conversando todas ali, como se amigas. Não eram. E o mundo sabia disso. Sem limites, ela grudava nos filhos e deles exigia reparação. Comprava roupas, perfumes caros, viagens com o dinheiro desse marido, uma sua vingança.
Na seda amassada do seu rosto, macerado por anos de cigarros Capri, cálices de Cointreau; para além da crepe suzette, dos molhos de tomates com músculo bovino -perfumados de manjericão e noz moscada e bolos chiffon de chocolate amargo que preparava, pelos choros no escuro da noite, o tempo incidindo. Já fora rezadeira, e, depois, na universidade, influenciada pelos ventos de então, ateia, existencialista, descrente, angustiada, declinara das deidades e fizera Deus o seu marido, epicentro, o pode tudo.
Mas, na velhice, depois de tanto, voltou à submissão, à crença, ao temor a um Deus, aos ‘obsediados’. Queria a vida mise-en-place que conhecera pela avó.
Mise-en-place é uma expressão sa que significa “colocado em ordem ou posto no lugar”.
Pensava na vida, nas pessoas, nas coisas assim: cada qual no lugar devido. E qual o critério definidor do que seria devido a cada coisa, pessoa?
Talvez divino. Do costume. Do indizível. Daquilo que apenas é porque sim. Como, por exemplo, uma casta. Impensável, para ela, cujo sobrenome se mantinha forte geração após geração, há mais de quatrocentos anos, na linhagem, pedigree dos fortes, dos grandes, dos que mandam, Átila em seu DNA, pensar num lugar diverso desse.
Sim, consciência de classe.
Que não desejassem, perto dela, ar a fronteira nós-eles. Nós, os superiores, eles, os de baixo.
Mas, na pele, irrevogável, o acúmulo de tanto. Comprava doces, muitos, olhos-de-sogra diet; bombons sem açúcar, porque se havia sempre de limitar o prazer. Deixava pronto para o marido, religiosamente, todas as noites, o molho de tomates frescos com o macarrão e o tal pedaço de músculo cozido para alimentar seu rei, seu faraó Ramsés amado-odiado, não importando que dele emanassem da rua outros perfumes e cheiros profundos. E nem mesmo que fosse ela professora-doutora-livre docente numa universidade pública, ganhasse muito, a ponto de não precisar ar tantos desaforos; poderia muito bem ter se livrado do flagelo humilhante. Mas, não. Não se tratava aí de inteligência ou liberdade, mas, crença.
Em seu tempo, mulher divorciada era lixo. Sem um homem, como haver? Quão banal pode ser o desenrolar de uma existência?
Seu segredo mais recôndito estava no alto de sua vulva, coroada pelo ponto que o marido jamais ara e esse, o regozijo, enfim, dessa mulher.
Vanessa Maranha é psicóloga e escritora
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